segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Uma saudade



Das risadas minhas 
e dos outros três 
conversas aleatórias 
futebol e outros clichês
derrotas e vitórias 
o CD novo de alguma banda 
daquelas que a gente ouvia 
até gastar os ouvidos 
pensando fazer algo 
de bom e parecido 
e então entrava 
e puxava a porta 
forrada por dentro 
como as paredes todas 
e assim que era
como uma caixa fechada 
recheada de vida 
vontades, sonhos e verdade.

Tudo ajeitado, plugado 
regulado, conectado 
com aquele momento à parte 
do resto do mundo
desatava os nós (entre nós) 
do dia a dia 
da semana puxada 
de tudo de ruim
naquelas seis cordas 
cuidadosamente afinadas 
que cantavam em sintonia 
com as outras seis 
precisas, certeiras 
e mergulhava de cabeça 
no mar barulhento
de pulos e ritmos
de tiques e manias 
e lavava a alma 
e até esquecia 
de onde vinha a calma
gritava de toda guela 
arranhava a garganta 
vibrava com o nascimento
de novos sons 
de guitarras dobradas 
levadas 
pelo baixo singelo 
e sincero 
e pela violência 
da bateria 
estampada em caretas 
mil e duas facetas
e sorriam todos 
era o nosso orgulho 
em conjunto, 
na empolgação  
na vontade 
no brilho dos olhos.

Naquelas duas horas 
eu desligava a chave
do mundo lá fora 
ia do agudo ao grave 
gastava todo o resto 
de energia, 
de voz, 
de fôlego, 
suava a camiseta 
desbotada e pequena 
e subia e descia 
os tons e as casas 
e quando acabavam as forças 
quando estava imerso 
por completo 
naquele universo 
paralelo 
acordava de novo 
em acordes novos 
de acordo com os outros 
não era só música 
era sentimento, era amizade. 

Nisso tudo a saudade 
se faz presente 
e até me faz tocar 
a guitarra imaginária 
pelos corredores da vida 
e marcar o bumbo 
no assoalho do ônibus 
e cantar 
o tempo todo 
e imaginar 
a primeira e a segunda voz 
e desse modo eu guardo
a lembrança daquele tempo 
com todo o carinho e cuidado
que podem existir 
como a guitarra preta 
quase nova, brilhosa 
que fica protegida 
no Hard Case marrom 
lindo, robusto
revestido de couro 
que hoje ornamenta 
com classe, 
o canto do meu quarto.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Um certo romance / uma pausa no tempo

Fazendo do meu colo travesseiro
as mãos juntas sob o rosto
as pernas atiradas no sofá
a paz nos olhos fechados
o descanso na boca entreaberta
tu repousa, linda
Pra mim, uma pausa no tempo
Um certo romance na TV
a música reverberando
pelos cantos da sala
batendo com força
nos meus pensamentos
que vão muito além
desse momento
vão longe
vão onde
as fotos passam
nas luzes apagadas
nos fogos subindo
na gente passando
no lusco-fusco cheio
de risos e choros
na felicidade plena
do teu olhar, morena
da minha barba sorrindo 

de todos abrindo
pra nós dois um caminho
que leva direto pro abraço
pro colo de onde viemos
e praquilo que amanhã seremos
e eu rio sozinho
voltando pra cá
e ainda te acarinho
passando de leve
os dedos nos teus cabelos
e na tua orelha
e tomo um gole
da cerveja
que nem tá mais tão gelada
mas eu nem ligo
eu não preciso de mais nada
te tenho aqui comigo
e então tu te mexe
te ajeita melhor
e segue dormindo
talvez sonhando
o mesmo sonho
pra onde eu voei há pouco
talvez só descansando
o teu descanso merecido
enquanto eu contemplo
o espetáculo natural
que a vida me proporciona
a cada vez em que eu
paro tudo
dou uma pausa
no tempo
no mundo
e fico ali
só te olhando
e gostando de te ver dormir
que nem criança, com a boca aberta.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Verde

Sinal verde. Já podia ir em frente, podia atravessar a esquina. Era noite. Era noite como em todas as outras noites, e era escuro e tudo, mas não me repito, porque aquela noite era diferente. E não para mim, mas para todos. Ao atravessar a esquina, segui meu caminho rotineiro, mas pela primeira vez eu percebi coisas que jamais antes tinham tomado a minha atenção. Tudo era verde, não só o sinal. Fachadas e letreiros, tantos; lojas e clínicas, verduras e frutas na feira noturna; a fileira de luzes que as sinaleiras formavam rua afora, que ao longe compunham quase um risco verde e aceso, brilhante. Um risco verde no céu da noite. O verde da esperança. Cheguei a me perguntar se o verde era a cor predominante nos estabelecimentos daquela avenida larga e tão sem cor, ou se era só a minha percepção que estava tão direcionada, mas segui, no piloto automático, sem calcular meu próprio combustível, pensando em tudo, pensando na vida, na sua fragilidade e na sua brevidade. O corpo seguia, mas a cabeça voava para a Colômbia, longe, triste, com escala em Chapecó. Eu que de certa forma respiro o futebol, dos gramados verdes, naquele momento respirava o vazio, que estava amarrado no nó da garganta, mas que não me deixava parar – minhas pernas seguiam, vestindo aquela calça verde surrada, que uso umas duas vezes na semana. O que passava na minha cabeça era que havia mais ou menos vinte e quatro horas, um outro risco verde no céu da noite entristecia o mundo. Aquela enorme ave de metal riscava o céu colombiano e em uma trágica descida se chocava contra o verde nativo, a mata fechada, sob o choro agressivo das nuvens negras, abreviando o sonho e a verde esperança de muitas vidas. E eu nem conhecia essas vidas de perto, mas acompanhava muitas delas de longe, torcia, xingava, comemorava, como se fossem todas minhas amigas próximas. Aquilo me destruiu. Tudo se destruiu. As vidas, as famílias, a mata, o avião, os apaixonados por futebol, e todos os seres humanos que têm algum amor no coração. Doía pensar em tudo, ver as imagens daquele buraco no verde escuro, destroços e malas, uniformes e acessórios verdes espalhados por todo o lado. Eu segui meu caminho, mas em determinado momento, todo esse aperto no peito – que agora volta enquanto despejo tudo nessas linhas – subiu até o meu próprio céu e então rolou olhos afora, num desabafo em colo virtual, desesperado e ligeiro. Cheguei em casa uma hora depois, como em todas as noites; a minha viagem saiu como o esperado, minha família me recebeu em casa, minha vida não foi interrompida violentamente pelo destino. Tive a sorte que muitos não tiveram. Mas continuo pensando, diariamente, que na noite anterior àquela minha caminhada noturna, o verde de setenta e uma esperanças desbotou para sempre.