sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Mais cinco minutos

- Tem que pagá pra entrá ali, meu?
- Quê?
- Tem que pagá pra entrá ali?
- Bah, tem que vê, meu, vamo ali...

Passaram por mim. Que susto. A verdade é que cada noite é uma aventura, e aquela parecia diferente, ao mesmo tempo em que parecia outra noite igual a todas. Os dois caras passaram, num caminhar ligeiro, um mexendo no celular, distraído, e o outro olhando em volta, parecendo agoniado. Talvez ele só estivesse com pressa pra entrar naquela caverna obscura, tomar uma cerveja barata e aguada, quem sabe dar uns beijos, dançar, não sei - vai saber o que se passa lá dentro. Não sei, porque também talvez estivessem querendo uma pedra, e tivessem facas nas cinturas, e sangue nos olhos, de repente até na pressa de ir ao encontro de alguém, uma carta marcada no baralho daquele breu. Ou pior, talvez estivessem forjando um assunto dissimulado para ali mesmo, naquele mini diálogo, ao passarmos, os três, por trás da banca de revistas fechada - era por volta das 22h30, mais ou menos -, partirem pra cima de mim, facas em punho, me ameaçando, e eu tentando resistir, e eles insistindo, e culminando numa tragédia, eu com a barriga rasgada a facadas, o sangue espalhado, as lágrimas rolando, e eles levando todos os meus pertences, e meus pais estranhando logo depois, às 23h40, quando eu não estivesse chegando em casa. Acontece que eu não sei, nem tentei saber, porque apertei o passo, e como que deixando cascas de banana na ultrapassagem, ganhei os metros à frente a passadas largas, deixando então aquele papo furado sumir aos poucos às minhas costas. Ali na frente, aquelas mesmas lancherias de sempre, com as mesmas (ou outras) pessoas mal encaradas perguntando o preço de qualquer coisa e olhando em volta, para mim, para a menina que ia logo à frente, sozinha, para o velho de boné atrás do balcão, para os carros que passavam à toda na Júlio... Talvez estivessem comprando um lanche, afinal. Ou talvez estivessem analisando a situação para atacar alguém. Eu não sei. No fim, mais uma vez não deu em nada.

O percurso é o mesmo de sempre, o vento na esquina é o mesmo de sempre, e também a sensação que carrego é a mesma de sempre: medo de tudo, nojo do cheiro e do aspecto de tudo, raiva em planos de desferir socos, talvez uma rasteira, a qualquer um que por ventura tente me atacar, mas nem sei como seria, se bateria e fugiria, ou se seria uma peleia violenta de filme, ou se somente apanharia e choraria de raiva em seguida. Tudo isso vai balançando ali dentro da minha cabeça, e balança rapidamente, no ritmo da caminhada, e das três ou dezoito trilhas sonoras que ouço enquanto passo pelas cavernas fedorentas. A trilha muda mais ou menos a cada trinta e três passos, eu acho. Eu acho, na verdade, é que preciso contar melhor, porque talvez sejam somente quinze passos o que separa uma música da outra, e elas saem de dentro das portas abertas, aquelas que têm ao lado um bruto segurança, fumando ou conversando, ou rindo, ou ameaçando alguém. Num cenário ideal, seriam brutos bailarinos, e eu passaria cantando, tranquilo. Mas o cenário não é o ideal, e disso eu já sei faz tempo. E quanto aos passos, vou contar melhor e guardar para uma próxima vez. Provavelmente haverá uma próxima vez, porque essa caminhada noturna parece uma fonte inesgotável de causos possíveis que vou criando na imaginação, enquanto olho em volta e sinto a brisa na cara. Agora faz calor e a brisa não me corta mais, só dá uma agradável refrescada, o que é bom. Mas aquelas pedras soltas na calçada me incomodam demais, porque os funcionários das espeluncas lavam tudo ao fim do dia, e aquela água nojenta, com espuma, gordura, mijo, farelo, azeite e tantas coisas possíveis de se haver ali escorre pra baixo das pedras. Então além de cuidar do que acontece à minha volta, eu tenho de cuidar em que pedra piso, porque não raro é uma solta, que cospe com violência aquela solução dos infernos para cima, o que pode atingir meus pés (é claro que já aconteceu). É adrenalina correndo nas veias, e pensamentos mil, às vezes o Grêmio no fone de ouvido, às vezes a resenha mental do que foi o dia, às vezes o planejamento do sábado que vem, às vezes só a vontade de sentar no banco do ônibus e continuar lendo a pesada história de Raskólhnikov, ou até, às vezes, é só o medo de tudo misturado com a vontade de chegar em casa, ver meus pais e dar sequência a tudo que a vida tem a oferecer logo ali na frente, na próxima quadra.