sexta-feira, 4 de março de 2022

Vivo

- Pode estacionar ali atrás. - Quanto é? - Quize reais a hora. 

Saí caminhando, sentindo o ar tocar mais ou menos um terço da cara, onde a máscara descartável, os óculos e a cabeleira o deixavam chegar. É estranho, eu nem gosto muito daquela avenida. Na verdade, quase sempre que passo por ali, faço o mesmo comentário: da Andradas pra lá, eu amo, queria morar lá, mas essa parte aqui, até o Camelódromo, odeio. Tudo. A rua, a calçada, o cheiro, os olhares de caras fechadas, o cheiro de novo. Mas ia dizendo que mesmo assim, peguei aquele ar na cara e gostei. Me senti vivo, era vida por todo lado, me atingindo nas canelas, nas mãos, nos cabelos, eu respirava fundo por de trás daquelas três camadas recomendadas pela OMS e aproveitava cada segundo. Tanto tempo depois, caminhar ali me deu esse gosto estranho de vida, de sair da toca e ver o mundo lá fora, essas coisas. Caminhei poucos metros, sempre atento, olhando em volta, notando tudo ao redor, inclusive percebi que as traiçoeiras calçadas não golfaram aquela sopa putrefatal de outros tempos. Isso era uma coisa que me incomodava: caminhar rápido por ali, pisar numa lajota solta e pá - meu Allstar amora encharcado daquele caldo que juntava sujeira, mijo, água da chuva, água escoada nas limpezas das calçadas das frentes de lojas e lancherias - podrera. Mas não dessa vez. Não chovera nos últimos dias, estava tudo seco. E ainda tinha uma brisa agradável. Sucesso! As paradas estavam cheias e as frutas e legumes estavam lá, nas mesmas bancas de sempre. Adentrei o mercado. Como de praxe, deu vontade de comer peixe, mas nem parei na parte das peixarias. Outra hora! Encontrei a morena, tudo já estava meio que fechando, mas ainda deu tempo de renovar o estoque de erva pro chimarrão - três tipos diferentes, meio quilo de cada. Não consegui comprar o café, tudo bem, fica pra próxima. Ainda daria tempo de passar por cima do viaduto e ver o céu todo cor de laranja se deitando por cima do Guaíba - espetáculo que sempre encanta, não importa quantas vezes se veja. Nos metros de volta, mais algumas lajotas soltas na calçada que carinhosamente não derramaram nada sobre meus pés e mais vida entrando em contato com minha pele, mais mil pessoas por segundo cruzando pra lá e pra cá. 

- Opa. Quanto ficou, então? - Deu dez reais.